Temos falado consideravelmente sobre relacionamentos em todos os textos, pois afinal, toda a vida de uma pessoa acontece e é permeada por relacionamentos, seja com amigos, com familiares, com até então desconhecidos e até mesmo com o terapeuta como no primeiro texto, que também era um desconhecido.
Porém, ainda não falamos especificamente sobre um dos relacionamentos mais importantes na vida de qualquer um, e aquele que com toda certeza, é o que mais existe assuntos e polêmicas a respeito, e que hoje em dia com tanta liberdade de expressão, anda sendo bastante distorcido e ao mesmo tempo com isso, também pode nos possibilitar entender melhor o que vem acontecendo de um modo geral.
Não consigo não perceber que relacionamentos amorosos hoje parecem estar sempre atrelados a um sentimento, infelizmente, cada vez mais comum, um sentimento chamado intolerância. Vejo muito em atendimentos, via muito mais quando trabalhei em clínicas psiquiátricas, não somente entre familiares, mas muito entre pares afetivos mesmo. E aí vamos parar aqui pra pensar como podemos olhar para cada um de nós diante desse fenômeno.
Sabe aquela coisa de saber curtir e ter o seu momento, de dar tempo ao tempo, de saber identificar e reconhecer o seu próprio tempo, para que apenas após isso, poder identificar e curtir o tempo do outro junto com ele, cada coisa no seu devido lugar, no seu devido espaço de tempo. Pois é, tem sido cada vez mais raro isso. Muitas vezes somos impulsionados a nos deixar levar pela pressão de convenções sociais, que diz que temos até tantos anos para concluir a faculdade, tantos anos para ter um emprego fixo e rentável, tantos anos para namorar e casar, e daí em diante, ou mesmo o famoso “e foram felizes para sempre” que todos tanto procuram e que ouvimos tantas vezes em contos de fada. O problema é que esquecemos que esse “para sempre” é na verdade toda a vida que se tem adiante, onde algo acabou de ser iniciado e precisa de tanta atenção e cuidado quanto o que se levou para chegar a esse novo início. O “felizes para sempre” é um grande processo em construção, que o tempo todo precisa estar sendo construído e desconstruído, não sozinho, mas em conjunto e com respeito.
Agora, quem foi que disse que esse tempo tem de ser realmente assim? ou melhor, quem disse que o tempo de nossa alma corresponde ao tempo cronológico e mecânico que nós inventamos?
Vamos parar e pensar que, cada pessoa tem sua carga de medos, receios e a bagagem mais pesada que existe, as expectativas. Expectativas acredito eu, são as maiores ferramentas que podemos usar para praticar a tal da intolerância, e tentarei deixar essa idéia clara aqui o máximo possível. Expectativas são coisas tão comuns a todos nós, todos temos, e são tão íntimas muitas vezes, vindas de desejos internos e individuais que por sua vez, nos faz cometer um erro extremamente pesado (e que teimamos tanto em repetir) que é o de depositar essa carga toda no outro, essa carga que como dito, é tão pessoal e tão nossa. E com isso, vem a enxurrada de cobranças, exigências, onde tentamos arrancar atitudes que o outro simplesmente não está preparado para corresponder. E afinal, quem falou que esse outro sequer tem essa obrigação de saber o que queremos, e quem diria então, corresponder a isso, sendo que muitas vezes nem nós mesmos sabemos o que realmente queremos da vida e de nós?
Na vida, cada um vem por um caminho diferente, onde em algum momento suas estradas acabam convergindo. Mas se um veio por uma longa e trabalhosa estrada, cheia de obstáculos e desafios, e a outra veio por um atalho mais suave através da floresta, então a coisa muda inteiramente em temos de relacionamento, e em dois sentidos sempre. O comum aqui é que, com o tempo, aquele que veio pelo atalho na floresta, pode esperar que aquele que veio da difícil estrada veja as coisas da vida um pouco mais suaves, assim como foi para ele, o que pode ser não só difícil para o outro, que tem sua visão de mundo oposta, mas até mesmo inconcebível. E por sua vez, aquele que veio da difícil estrada pode talvez começar a sentir que, por seu caminho ter sido mais complicado que seu parceiro que tem uma postura um pouco mais solta com a vida, começa a sentir certa frustração com essa suavidade, e coloca na cabeça que ele deveria levar as coisas de modo mais sério, mais parecido com ele. Logicamente com o tempo, esses pensamentos viram cobrança, e por sua vez, ressentimento. Aquele que veio pelo atalho suave pode se sentir incompreendido pelo outro que vê apenas dificuldades, e o que veio da estrada complicada pode começar a sentir-se de um modo como se o outro lhe devesse algo por não ter tido a mesma dificuldade, e começa a cobrá-lo por conta disso.
Nisso tudo, difícil mesmo acaba sendo achar um ponto onde ambos possam se entender, e decidir como vão acertar o passo, de modo a caminharem no mesmo ritmo, no mesmo chão. Na situação do exemplo, ambos poderiam ter apenas aceito as diferentes experiências como possibilidade de se complementarem e enriquecerem sua relação, pois afinal, um passou por momentos e teve coisas que o outro não teve, e vice-versa. Talvez isso possa nos mostrar que na verdade, achar esse chão em comum não é tão difícil assim, basta termos consciência para onde estamos olhando, e para onde queremos olhar. A igualdade supera as diferenças
Vemos a partir daí, que um relacionamento a sério não é uma brincadeira ou algo simples como as convenções sociais nos dizem, como uma simples mudança de status em redes sociais, que são banhadas de “curtir”, precisamos entender que amar alguém deveria implicar em ser amado de volta, deveria vir fácil, pois quando o amor é luta e não é recíproco, não é amor então, é apenas ego. O verdadeiro amor começa a partir do momento em que nós aprendemos a praticá-lo em si próprio, e o mesmo vale para o parceiro respectivamente. Sem amor próprio, o amor ao outro simplesmente não existe, e quando descarregamos todo o tipo de expectativas e fardos, confundimos comumente esse sentimento com uma codependência. Precisamos nos dar conta de que essa compreensão do ritmo de um e de outro, assim como do próprio amor e como tudo na vida, não funciona a base da barganha, não é uma troca de favores ou pagamento de dívidas, não podemos querer pelo outro assim como não podemos esperar que o outro pague essas dívidas que na verdade impomos a nós mesmos, de modo tão egoísta.
E quando essas dívidas não são correspondidas, ficamos com um tanto de raiva não ficamos? isso não é algo que se aplica apenas para mulheres (que gostam de ser vingativas quando querem) ou somente para homens (que sabem ser rudes nisso quando querem), é algo que infelizmente é comum a todos, e acabamos convivendo ao lado de uma pessoa que praticamente transformamos em um inimigo. Quem quer que acabe sendo personificado como o inimigo não é vivenciado pelo outro como uma pessoa inteira, mas fica reduzido apenas aquelas reais ou imaginárias que o carimbam como um objeto de agressão, graças as nossas expectativas exacerbadas, que levam a idealizações.
E em outras palavras, podemos também perceber como é fácil se deixar escravizar pelas expectativas dos outros, da sociedade, ou até mesmo de questões menores como as burocracias do mundo, economia e instituições diversas, mas acima de tudo, também é muito fácil tornar-se escravo de si mesmo e das próprias atitudes auto-indulgentes. Nós somos sim, bastante determinados por esses fatores externos, mas sem dúvida somos escravizados pela nossa própria bagagem de hábitos.
E como sempre repito aqui, o fato de termos a capacidade de reconhecer isso, nos da uma imensa vantagem sobre essas situações, pois podemos encarar isso como um problema ou como uma oportunidade. Se abandonamos o desinteresse e a indiferença, e nos relacionamos com nossos conteúdos internos e externos sem medos e ansiedades, o potencial de erro, ou melhor, de nossas repetições, naturalmente tornam-se uma gama enorme de possibilidades. Essa é a vantagem do erro perante o acerto: o acerto é apenas o acerto, acabou e pronto, muitas vezes visto como tendo a própria perfeição de pré requisito; não há dois acertos, agora, o erro é múltiplo, e isso pode ser bom por incrível que pareça.
Quando uma criança fala errado, achamos bonito e engraçado seu esforço. São erros, cometidos com grande ingenuidade, sem uma intenção ruim, que eu e você podemos, e cometemos diariamente, e que a muitos, podem causar raiva extrema. Algumas vezes o próprio fato de a pessoa ser tão inocente em seu erro, e deixarmos ele nos atingir tão profundamente, vira motivo de desespero quase existencial que vem numa raiva vulcânica, muitas vezes sem objeto específico, e que podemos carregar por dias. Como li num texto a uns dias atrás, ressalto aqui também que talvez algo assim tenha querido dizer o dramaturgo Samuel Beckett, com seu “Fail better”, fracasse cada vez melhor. O sucesso é sempre muito mais perigoso do que qualquer fracasso.
Há infinitas formas de errar. Ainda que ele possa ser grave, perigoso ou difícil, também pode ser adorável, interessante, algo que possa, ao invés de vir apenas na forma de repetições, nos trazer também novas perspectivas e novos meios de tentar algo que estávamos a tanto tempo tentando do mesmo jeito, então talvez com isso possamos ver que seja hora de tentarmos algo diferente afinal, não? E quem sabe com isso, conseguirmos resultados também diferentes.
E se for para ver as coisas diferentes, que tal esse ponto de vista então: a melhor forma de amor deveria ser aquela em que a pessoa não necessita de absolutamente nada do outro, não é dependente do outro, que sabe viver e ser feliz também sem o outro. Imagino que algo assim na nossa atual sociedade soe como um grande “mas como assim? isso não faz sentido!”. Mas, se pararmos para pensar, se a pessoa está com a outra sem precisar e ser dependente dela, não por necessidade ou dependência alguma, então é porque sobrou apenas o amor, ela está com essa outra pessoa pelo simples fato de que ela quer isso, algo puro e verdadeiro. Isso não soa bem melhor? Pois melhor que termos sonhos e esperanças com alguém junto, é saber que esse outro alguém está ali partilhando isso pelo simples fato de que o mesmo deseja estar ali, e nada mais.
Mas devemos ter a consciência de que esse amor verdadeiro tem de partir primeiramente de nós mesmos, para com nós mesmos. O amor próprio é aquele que sempre esquecemos de cultivar e deixamos de lado, pois aprendemos em nossa cultura que isso é egoismo, e que devemos nos sacrificar pelos outros, pois isso é altruísmo e isso sim é bom e nos faz nobres. Essa é uma grande mentira. Como é que podemos vender algo que não compramos? como podemos querer instigar o amor, se nem sequer amamos? se nem sequer nos amamos? A mim, parece que confundimos esse egoismo, pois ao ser “altruistas”, caímos nesse movimento de acabar colocando expectativas nos outros na forma de barganhas, pois se eu me sacrifiquei tanto pelo outro, o mínimo que ele pode fazer é me retribuir! Não é mesmo? Pois é, não. A meu ver, isso é o que acaba sendo realmente egoísta no fim das contas, jogar nosso fardo, nossa responsabilidade por nossa vida e felicidade, nas costas do outro, camuflado por esse traje de mártir, e praticamente querendo que o outro nos faça feliz e ao mesmo tempo, que ele busque a própria felicidade.
Quer dizer então que não devemos nos sacrificar pelo outro? devemos, claro que sim, mas se isso custa nossa própria integridade física e mental, então devemos rever porque realmente deveríamos fazer isso pois afinal, se não cuidamos nem sequer de nós mesmos, como queremos então cuidar dos outros? Não faz sentido então essa linha de raciocínio, a única pessoa que vai viver nossa própria vida somos nós mesmos, e ninguém mais, e apenas nós mesmos podemos buscar aquilo que nos faz felizes. Ninguém consegue ser realmente feliz, se não conhece o próprio valor.
Com isso em mente, não devemos levar em conta unicamente o buraco do vazio que ficou por causa das expectativas que criamos, como as vezes vejo muitos fazerem, e muito menos devemos incumbir o outro da missão de tapar esse buraco. Não adianta pressionar a casar porque acha que seu tempo está passando e se sente velho (a), não adianta apressar para ter um filho se o outro não se sente preparado para tal responsabilidade, nada deveria fazer com que o parceiro mude de idéia, e se de algum modo conseguir, estamos então começando a minar a relação com ressentimento e uma submissão forçada. Ninguém deveria ser tratado como uma propriedade.
A alma de cada um tem seu tempo e seu ritmo próprio, que tem de ser respeitado, por nós mesmos primeiramente, para só então termos a humildade necessária de entender e se interessar pelo tempo do outro.
Não me leve a mal, não digo com isso que expectativas são ruins e prejudiciais, mas sim que elas podem ser isso tudo e podem também ser boas, afinal, é algo nosso e todos a tem, não existem meios de eliminá-las, mas temos que ter o cuidado de não ultrapassar o limite onde elas deixam de ser aquele friozinho na barriga de uma ansiedade saudável antes de um momento tão esperado, para quando elas se transformam num emaranhado de confusões caóticas em nossas mentes, as vulgo “caraminholas”. Isso prejudica ambos numa relação.
Portanto, pensemos a respeito de nossas obsessões e preocupações com as coisas se darem como queremos que elas se dêem, pois mesmo que nos comportemos como esperávamos nos comportar, ou pior, como esperam que nos comportemos, nossas expectativas quanto a nos encaixar no mundo (ou no mundo dos outros), acabam sendo infundadas. Pensemos também que devemos sempre ressaltar algo que odiamos pensar, a nossa finitude, nosso tempo limitado aqui. Em pouco mais de 100 anos a maioria de nós não vai estar aqui, seremos apenas lembranças. Parece fúnebre e deprimente não é? eu sei, mas a intenção é justamente de evidenciarmos isso para nos perguntar: por que deveríamos nos preocupar tanto com expectativas e padrões rígidos que nós nos autoimpusemos?
Além disso, nosso desinteresse e despreocupação com aproveitar bem o que temos, com quem queremos, acaba sendo até criminoso, com ambas as partes.
Que possamos começar a praticar mais a honestidade, e nem preciso dizer que ela deve começar a ser praticada em nós mesmos antes de tudo, né?
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