Nesse texto, aproveitarei um pouco o que foi abordado no texto passado, onde aprofundamos a importância de revermos nossa linguagem, não apenas em como a expressamos no verbal, mas como expressamos aquela que temos com os outros em relacionamentos sejam eles quaisquer que sejam, na dificuldade em que temos de perceber essas relações como forma de uma ligação mais profunda com esse outro, e principalmente, com nós mesmos. Falamos então de uma linguagem muito menos concreta e muito mais subjetiva, que toca também o nosso íntimo justamente por sugerir que olhemos para nós mesmos, no sentido de buscarmos um autoconhecimento para quando estivermos diante de situações onde deveríamos voltar para si mesmos, ser capazes de assumir as responsabilidades de nossos atos e palavras, no lugar de jogar essa responsabilidade nos outros, encarar a si mesmo e não deixar nossos monstros para os outros encararem. Vimos como podemos também usar alguns recursos, como as metáforas, que através de uma linguagem mais poética pode tornar um pouco menos concreto esses nossos sentimentos e emoções que muitas vezes podemos não entender direito ou nem mesmo conhecê-los.
Sendo esse um tema muito mais específico, focando mais em como nos relacionamos conosco como humanos, e com outro ser humano de nosso convívio, quero nesse texto propor algo semelhante na parte onde vamos rever nossos conceitos e questões internas e como as exteriorizamos, mas num enfoque de como nossas ações também podem se manifestar em nossa sociedade, em nós como um todo, como um coletivo, onde a atitude de uma pessoa pode influenciar a de diversas outras. Como o nome sugere, usarei o termo “bipolar” aqui, não para falar do transtorno bipolar, tão famoso hoje, mas apenas para ilustrar como temos a forte tendência hoje a oscilar entre dois extremos sempre opostos, e sobre a bipolaridade como transtorno, bem, esse será um tema para outro texto.
Um grande fenômeno de hoje, que veio principalmente com a ascensão estrondosa da internet e meios de comunicação, que talvez até conseguimos ver mas não damos real atenção, é sobre como vemos e comentamos eventos cotidianos de maneira indireta, indiferente e impessoal, e não cultivamos o hábito de realmente tirar algo daquilo para nós mesmos, de ver o que determinado evento que as vezes nem sequer foi conosco, mas que pode ter nos afetado como coletivo, pode também estar falando sobre nosso momento atual, enquanto indivíduos e enquanto coletivo. E é também engraçado como ao mesmo tempo, alguns adoram exteriorizar tudo e qualquer coisa que vem em suas mentes, de qualquer jeito e normalmente condenando ou criticando outros que se expuseram, que não obtiveram o tão almejado sucesso em algo, ou simplesmente a tudo aquilo diferente de nós e de nossa opinião, e isso graças a um recurso de proteção que veio inerente a essa “liberdade de expressão”, que é o anonimato.
Junto com a mídia, usamos esses fantásticos meios de expressão e comunicação para transformamos nosso meio num conceito chamado de “Sociedade do espetáculo”, um conceito criado por um escritor francês chamado Guy Debord, o qual aponta que o capitalismo e seu modo de organizar a sociedade, acabou sendo o principal meio gerador de uma alienação em massa, onde o espetáculo era uma das formas manifestas da luta de classes, e onde a burguesia usava isso como uma forma de dominação e manipulação sobre o povo (assim como víamos nas arenas e gladiadores, por exemplo).
Infelizmente hoje, seguindo essa imagem, temos que além do espetáculo criado por nossos governantes, há ainda o próprio povo se colocando nesse novo espetáculo criado por ele mesmo como atrações principais. Esse ponto me chama a atenção por ficar claro uma inversão de papéis que ocorreu, de uma imagem que na psicologia analítica chamamos de arquétipo do trickster. Explico brevemente o que é isso, pois haverá outro texto falando apenas sobre os arquétipos, mas por hora, devemos saber que para Jung todos nós temos nossa camada consciente, aquela que corresponde as camadas mais superficiais da nossa percepção, ligada a eventos externos e a vida particular de cada sujeito, e todos também estamos no inconsciente coletivo, que são bases do nosso inconsciente muito mais profundas e que diz respeito não apenas a nossa natureza individual, mas onde encontra-se conteúdos, modos de comportamento, formas e principalmente, imagens (arquétipos), que são universais, primordiais e comuns a todos os seres humanos, indiferente da cultura, origem, país e etc. Como um fluxo contínuo e etéreo (aquilo que a carne não pode sentir), que se pode ter acesso apenas através de sonhos, da arte, e da imaginação, e justamente por isso é inerente a toda cultura humana e algo do qual todos estamos inevitavelmente inseridos.
Esse inconsciente coletivo então, se visto como um fluxo contínuo e perpétuo, oscila e manifesta-se através dessas imagens e também de padrões de comportamento que correspondem a elas, e uma dessas imagens é o arquétipo do trickster (traduzido: trapaceiro). Ele costuma ser conhecido justamente por ter uma natureza ambígua, animal e humana ao mesmo tempo, maléfica e benéfica, sublime e grotesca, infantil e adulta, que geralmente conduz ao caos e infração de leis, com fins também ambíguos, podendo ser tanto benéficos e civilizados, ou simplesmente porque quis ver o circo pegar fogo. Exemplos de figuras conhecidas, vai desde o Saci Pererê, a elementos bíblicos como Satã, Loki no paganismo nórdico, até o Coringa do Batman e Jack Sparrow do Piratas do Caribe. Geralmente são figuras que acabam catalisando acontecimentos grandes e com muita bagunça, sendo imprevisibilidade a palavra-chave para descrevê-las, e paro a descrição por aqui, senão não acabaria tão cedo, pois cada arquétipo é dotado de uma complexidade praticamente infinita eu diria, e o que foi dito dele é justamente o que nos cabe aqui. Toda essa ambiguidade e imprevisibilidade, essa figura acaba sendo o arquétipo que melhor representa nosso povo hoje, mas entre as ações ter fins civilizatórios ou não, acredito que o que mais tem aparecido são os fins puramente caóticos.
Uma figura clássica do trickster é o bobo da corte, comum a todos, que para quem não sabe, não somente eram aqueles que faziam palhaçadas para reis e monarcas se divertirem, mas esse posto lhe permitia também ser o único capaz de fazer sátiras dos próprios reis e rainhas, o único que podia criticá-los sem correr o risco de serem decapitados por isso, e de certo modo defendendo o povo ao desconstruir esses governantes, pois ele dizia o que o povo queria dizer aos governantes ao zombar da corte. Mas hoje esses tricksters usam esse papel para satirizar o próprio povo, que por sua vez acaba fazendo o mesmo, pois toda nossa mídia nos mostra que isso é o que dá certo e é o que realmente é divertido.
Me parece que não é por acaso que seja cultivado essa passividade frente a raiz real do problema, e que nosso foco para o problema seja mudado para vê-lo como sendo nós mesmos. Talvez se pararmos para pensar em como para um governo seria conveniente que a educação de seu povo seja defasada, e que através da mídia se pregue não só que sejamos ignorantes quanto a realidade, mas que fiquemos focados apenas em disputas supérfluas entre nós mesmos, como as tragédias de brigar odiosamente com o time rival, lutar contra pessoas de partidos políticos diferentes, punir todos aqueles com menos educação e informação (ou até com a total falta disso) com violência e até morte, e enfim, vendo a nós mesmos como o problema a ser resolvido. Deixamos de ver que a maior parte desses problemas sociais tem uma raiz muito mais profunda, mas não pretendo aqui iniciar um debate político/social, é apenas o começo de minha opinião acerca do assunto, mas que serve de ponto de partida para o que quero tratar nesse texto.
Nossa cultura nos cobra que sejamos sujeitos estáveis, adaptados, calmos e passivos, seguindo tudo que nos é posto na frente e só assim poderemos ter uma vida “normal”. Se pararmos para pensar em como as palavras que usamos para termos simples nos afetam, veríamos que elas tem um impacto muito maior do que pensamos, como a própria palavra “normal”, que é tudo aquilo que não é diferente, que é igual à maioria a seu redor, que não se destaca e que é algo comum, dentro das normas.
Basicamente a pessoa apenas se adapta ao exterior, evitando sofrimentos e coisas doloridas, e nada realmente traz para seu interior, não aprende com suas experiências e não conhece seus próprios sentimentos e opiniões, talvez por ter medo de como vão julgá-lo caso se exponha, ou por também se incomodar com quem faz isso, e as vezes mal sabe de que é possível se expressar sem que os outros precisem pedir por isso, ou para poder sequer olhar para dentro de si, lidar com suas questões e considerar a si próprio como um indivíduo distinto. Soa como algo do tipo: já que todos se fecham e não se expressam, por que eu faria diferente então? Se fizer diferente, eles não irão me aceitar.
E é exatamente aí onde nos enganamos redondamente. Jung já dizia: “O sofrimento tende a representar um papel criativo se o ponto de vista consciente é efetivamente relacionado a ele. Aprendemos que a pessoa satisfeita e idealmente adaptada, livre de problemas, pode ser um tipo um pouco insípido, desinteressante e não criativo.” O movimento ambíguo, bipolar, de que estamos falando aqui aparece justamente por termos essa revolta, essa fúria a nossos governantes e todos aqueles que nos causam alguma injustiça, e que extrovertemos isso nessa outra forma, contra nós mesmos de forma punitiva e praticamente opressora. Esse novo espetáculo que criamos ao nosso coletivo consiste muitas vezes em satirizar o próprio indivíduo nele, se esse demonstrar que pode estar se afirmando de maneira diferente, não necessariamente naquelas normas quase impostas, ou seja, de modo “anormal”, e logo esse indivíduo é visto e tratado com o sentido pejorativo da palavra “anormal”. Se nos vemos oprimidos primeiramente por nossos governantes, por que em resposta a isso, devemos oprimir a nós mesmos e ao próximo?
A internet por exemplo, que poderia ser usada como um grande meio de comunicação e integração, acaba sendo usada para uma criação de grupos seletos, fechados e distintos que no final servem apenas para separar ainda mais uns dos outros do que unir. A busca por aceitação fala muito mais alto aqui, e esse movimento de criação/divisão de grupos por gosto musical, preferências de hobbies e seja mais o que for, acaba por criar não apenas grupos, mas verdadeiras facções. Não que criar esses grupos mais específicos seja uma coisa ruim, mas o que acontece é que no lugar de pesquisarmos, e entender outros grupos e costumes diferentes dos nossos, buscando uma integração e entendimento mútuo, acabamos por pesquisar pontos fracos e defeitos dos mesmos para saber exatamente onde atacar, fazer piadas e nos distanciar cada vez mais. Parece que assumimos uma outra imagem do trickster aqui, parecida com o bobo da corte, mas uma outra chamada de bufão, que por sua vez, era conhecido por ser mais grotesco e detestável pelo povo, justamente por apontar de forma grotesca e exacerbada as características do próprio povo.
Afinal, se eu gosto de música, e você também, porque devemos apenas discutir qual gosto musical é melhor e achar motivos pra isso? No lugar disso, porque não podemos discutir o que essas músicas nos trazem de bom, que sentimentos elas nos evocam, e partilhar porque gostamos disso ao invés de se atacar? O movimento bipolar aqui se mostra justamente quando vemos muita gente pregar o fim da violência e que busquemos justiça e igualdade a todos, mas na primeira oportunidade de pôr isso em prática, inverte isso e critica as músicas e qualquer artista atual, ou o modo de fulano se vestir, ou o fato de ciclano preferir qualquer outro esporte em vez de futebol, e daí em diante.
Essa cultura é o triste retrato de grande parte da juventude cética que temos hoje (que por sua vez, vieram de adultos céticos, desiludidos com suas próprias idealizações não realizadas), pois por um lado dizem não acreditar em nada, e contraditoriamente isso acontece por terem justamente acreditado em qualquer coisa que ouviram por aí, de qualquer um, motivos diversos sobre porque não deveriam acreditar naquilo que dizem então não acreditar. Dois extremos opostos agindo juntamente, de forma incoerente, caótica.
O que temos aqui é que diante dessa enxurrada de informações que recebemos, não somos capazes de discerni-las, começamos o movimento na hora em que absorvemos tudo isso sem qualquer tipo de filtro, e nessa confusão, direcionamos essa energia toda na direção errada, de forma errada e confusa. Esse movimento bilateral, que inicia-se no movimento unilateral e literalizante que comentamos no texto passado. Mas comecemos então a ver como isso causa e transforma a vida dos outros, juntamente com a vida dentro de nós mesmos. Mesmo em nossas ações de críticas desconstrutivas e desmedidas (as quais as vezes fazemos sem nem sequer se dar conta) com intuito único de inferiorizar o outro e que nos faz sentir-se superiores, também existe muito a ser tirado, muita coisa valiosa da qual podemos usar para refletir.
Já que nos habituamos a expressar o que queremos de forma impositiva e desatenta, torna-se comum as pessoas expressarem também tédio, tristeza, raiva ou frieza no dia-a-dia, sem notar que cresce aí uma grande desconexão e lentamente passam a não ver sentido em suas conversas, encontros e eventos sociais. E apesar de sentirem um clima de cinismo, falsidade e hipocrisia generalizada, quem percebe isso nos outros acabam também não identificando em si mesmas um outro grande fenômeno infelizmente muito característico em nossos dias, que é uma grande alienação emocional, a qual condenamos tanto nos outros.
Tudo acaba se resumindo numa enorme necessidade de autoanálise, de autocrítica, antes de pensar em fazer o inverso, de pensar que talvez muitas coisas comecem a partir de pequenos atos. Aqui é onde esse movimento “bipolar” deveria realmente acontecer, de se voltar para dentro, consultar e tentar entender nossas emoções, para depois colocar isso no exterior, pois estamos o tempo todo lidando com pessoas. Antes de criticar quem não te olhou direito na cara, pense que essa pessoa pode estar tendo um péssimo dia, e que talvez num dia em que você estivesse também num dia horrível, quem sabe você não tratou outras pessoas do mesmo modo, e seguindo essa linha de raciocínio, os exemplos se tornam inúmeros. As vezes parece muito fácil colocarmo-nos numa posição onde esquecemos que todos nós somos seres humanos, nos isentando assim de ser responsáveis por nossos atos.
James Hillman no livro Psicologia Alquímica nos fala num trecho:
“Em vez de segurar ou atuar, aja internamente. Cozinhe no rotundum, como já foi chamado um vaso, referindo-se tanto a um recipiente quanto a redondeza do crânio. Mantenha o calor dentro da cabeça ao esquentar os devaneios da mente. Imagine, projete, fantasie, pense.”
O que podemos tirar disso, ainda em paralelo ao que vimos até então: Definitivamente não devemos reprimir nossos conteúdos/devaneios mentais, mas devemos, sim, pensá-los livremente e deixar de ter a consciência de que esses pensamentos são seus, e de que podem ser controlados. Eles não podem, eles simplesmente aparecem, em forma de desejos, de padrões de imagens arquetípicas, e não podemos evitá-los, mas apenas aceitá-los e nos abrir para o que eles podem estar querendo nos dizer. Nosso desejo não deve ser lançado ou projetado diretamente no exterior, no mundo, pois assim como o fogo direto e intenso, sem ter cuidado ele apenas queima e enegrece as sementes, sementes de tudo que possa ser visto como potencialidades para o novo.
Ficamos tão presos no exterior, criticamos tudo que vemos, buscamos sempre todos os defeitos dos outros e intensificamos eles ainda mais, muito mais até do que realmente são, e com isso conseguimos com muito sucesso, desviar o foco de nossa própria atenção para aquilo que realmente importa, que é o que sentimos dentro de nós mesmos. Como já comentado no texto anterior, o mundo geralmente é para nós aquilo que fazemos dele, é o reflexo de nosso interior, então se o tempo todo ficamos encontrando no externo coisas horríveis, odiosas e desprezíveis, pare e tente imaginar como o interior que tanto evitamos não deve estar a essa altura.
E tudo bem admitir termos todas essas coisas “horríveis” em nós, tudo bem mesmo, de verdade, isso não nos torna pessoas ruins mas muito pelo contrário, na verdade isso além de nos lembrar que somos todos iguais, sem exceções, nos apodera também pois cada um tem com isso a chave para iniciar uma transformação muito mais profunda do que essa imposição demasiadamente extrovertida faz parecer que temos. Que fique claro que com isso não digo que ser extrovertido é ruim, mas apenas que tudo quando é excessivo em nossas vidas, é ruim. E afinal, só pode transformar e lidar com a escuridão interna, aquele que se abre a experienciar isso, até acabar descobrindo que ela é necessária para lembrar-nos sempre o quão humanos nós somos, e que ela pode não ser assim tão assustadora.
Um psiquiatra e psicanalista chamado Heinz Kohut, em sua obra The Restoration of the Self, apresenta um conceito que ele chama de Transferência Especular, que basicamente fala de um acolhimento empático muito necessário ao terapeuta, mas que qualquer um pode claro, praticar por si mesmo. A definição desse conceito, resumidamente é:
“…de acordo com Kohut, vem de uma necessidade humana básica e vital de “ressonância empática”. Todos nós precisamos de espelhamento para nos reconhecermos e necessitamos de ressonância empática para nos sentirmos reais, aceitos e valiosos para os outros e, consequentemente, para nós mesmos.”
Falamos com isso, da necessidade de desenvolvermos uma capacidade de oferecer acolhimento, assim como também termos consciência de que de um modo ou de outro, o tempo todo estamos sendo exemplos para alguém, indiferente da idade. Aqui friso novamente a grande importância de nos vermos mais responsáveis por nossas atitudes, para com que tipo de ações e intenções realmente devemos estar deixando falar em nossos atos. Pois assim como dito no começo do texto, palavras simples podem ter um peso muito grande, e o mesmo vale para nossos atos na vida de outras pessoas, pois podemos também ser exemplos nós mesmos.
Há um filme (muito bom, que recomendo muito também) que me lembrei ao escrever esse texto, chamado Mr. Nobody, um filme que fala muito sobre física quântica sendo aplicada na nossa vida cotidiana com pitadas de uma estética surrealista futurista, e que nos fala também, e resumindo bem basicamente, sobre como nossas vidas são regidas por escolhas e o quanto elas afetam toda a nossa existência e a de todos os outros, e a partir disso o filme entra num viés de como uma escolha rejeitada pode ter sido numa outra realidade paralela e totalmente diferente, onde tal escolha foi tomada e não rejeitada, e o filme acaba virando um emaranhado de possibilidades que nos traz muito mais questionamentos do que conclusões, deixando o final (ou os finais) para nossa própria interpretação. É daqueles filmes que te deixa com uma sensação boa, e ao mesmo tempo encucado com tudo o que viu, mas enfim, o que quero ressaltar dele é uma cena específica que gostaria de usar (sem detalhar muito para não estragar o filme a quem não viu) como imagem para ilustrar melhor o que estou querendo dizer aqui.
A cena conta como o personagem principal não consegue o telefone de sua amada, porque no exato momento em que ela lhe dá o papel com o número, uma gota de chuva cai em cima do papel, que borra esse número e ele o perde. Até aí tudo bem, mas então ele começa a explicar como foi que isso aconteceu. Tudo começou porque um brasileiro desempregado estava fervendo um ovo, e o calor produzido por isso causou uma pequena diferença de temperatura que foi se condensando até, dois meses depois, se tornar uma grande nuvem de chuva no Canadá, a qual acerto a gota no papel. Ele só ferveu esse ovo porque não estava no trabalho, que era numa fábrica de calças jeans, e isso porque 6 meses antes, o personagem principal havia comparado o preço de uma calça jeans que tinha vindo da fábrica dele com uma mais barata de outro lugar, e comprou a mais barata, o que ocasionou na futura demissão desse brasileiro, e que nos levou então a parte do ovo e da nuvem.
Claro que isso envolve uma série de teorias, tal qual a do efeito borboleta, mas podemos ver isso de modo mais concreto e mais corriqueiro para entendermos melhor essa dinâmica, e ver também como uma capacidade de acolhimento, ou uma ressonância empática, em apenas um momento chave, pode fazer toda a diferença. Vamos imaginar uma cena então:
Num não tão belo dia, algo qualquer aconteceu e deixou o sujeito A de muito mal humor, algo nem tão grande assim mas que por algum motivo, sujeito A se deixou afetar por ele. Por conta disso, ele sai para pegar o ônibus para o trabalho, e a primeira pessoa que encontrou foi o cobrador, que lhe saudou com um bom dia e um sorriso, o qual sujeito A apenas ignorou e nem sequer olhou o cobrador nos olhos. O cobrador também não gostou disso, e agiu de forma semelhante com o sujeito B que foi o próximo a entrar no ônibus. O sujeito B, que estava tentando se adaptar ao clima dessa cidade nova a qual se mudara a pouco, tentava timidamente ter um certo contato com os outros, mas o fato do cobrador parecer irritado, o fez pensar que poderia ser com ele, e o sujeito B então se fechou até descer em seu ponto. Ao sair, se distraiu enquanto andava na calçada e esbarrou com o sujeito C, e sem pedir desculpas e nem nada, pois achou que a reação do sujeito C fosse ser igual a do cobrador, simplesmente virou a cara e continuou seu trajeto. O sujeito C por sua vez, já com a cabeça cheia de preocupações, pois é o chefe de sua empresa, acabou se irritando mais ainda, e sentiu que precisava extravasar aquilo de algum modo, e foi quando o sujeito C repreendeu sujeito D, além de fazê-lo trabalhar mais. Sujeito D por sua vez, trabalhou até mais tarde, o que o deixou muito muito cansado, e ao sair com seu carro, acabou se distraindo e bateu no carro do sujeito E. Não foi uma batida muito forte e nada grave aconteceu, mas foi daquelas batidas onde acertou uma parte do carro a qual o concerto e o custo causarão certa dor de cabeça. Sujeito D então, mais irritado que nunca, volta para sua casa, bebe um pouco a mais que o normal e perde o controle, acabando por agredir sua mulher e filho pequeno, e isso tem acontecido já fazia um tempo mas naquele dia pareceu ter sido ainda pior. No dia seguinte, o filho pequeno do sujeito D vai para o colégio e, por conta de as vezes ter esses atos de violência em sua convivência com o pai, ele tem demonstrado certa agressividade com seus colegas, e nesse dia acabou agredindo o filho do sujeito A numa briga. Ele volta para casa desconcertado com o fato, o sujeito A percebe mas fica meio assim de perguntar, e então sua mulher pergunta e não obtém resposta, fazendo com que o filho corra para o quarto, aparentemente chorando. A mulher do sujeito A não fica feliz com a passividade dele, e começa então uma discussão.
Um exemplo que claro, é fictício, mas que muito provavelmente pode e deve acontecer todos os dias de nossas vidas. Talvez se o sujeito A tivesse compreendido que seu mal humor era algo dele, que ele teria que lidar e resolver com ele mesmo, e tivesse apenas dado bom dia ao cobrador, quem sabe o quanto de todos esses eventos pudessem até ser evitados. Um simples gesto muitas vezes, pode mudar completamente a vida de outra pessoa, e principalmente a sua também.
Talvez aqui possamos ver de alguma maneira que não somos então tão pequenos quanto achamos que somos, e que um aparente pequeno gesto pode influenciar totalmente nossas vidas e a de muitos outros, pois somos todos parte de um grande coletivo, de algo maior, somos interligados. Apesar de sempre nos pregarem a necessidade de sermos independentes, esquecemos completamente de que somos também todos interdepentendes uns dos outros. Que possamos parar e refletir a respeito.
Uma boa semana a todos, e até o próximo post.
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