Um outro olhar ao deprimir-se na cultura do sucesso

Falemos um pouco sobre a depressão. Assim como a bipolaridade, parecem ser hoje as coisas que mais se houve falar, as patologias que estão em alta nos consultórios psiquiátricos e também na boca do povo. Com tanta facilidade ao acesso a informações então, parece que todo mundo hoje sabe muito sobre o que são realmente esses transtornos, desde seu modo de funcionamento no organismo, até seus aparentes sintomas.

E apesar de todas as descobertas que já foram feitas sobre ela, suas causas orgânicas, desequilíbrios químicos nos neutrotransmissores e daí em diante, tornou-se apenas mais um dos diversos transtornos com os quais acabamos usando para nos justificar e muitas vezes até mesmo, para fugir da realidade e de muitas coisas. E claro, que fique esclarecido aqui que me baseio em experiências de vivências clínicas para tal afirmação, pois como é de se esperar, cada caso é um caso e nem sempre a depressão aparece apenas dessa maneira. Quero dar ênfase com isso, na grande banalização do único extremo em que conseguimos ver esse tipo de atividade da psique humana, tanto é que, se você agora mesmo abrir o Google, e digitar apenas “depressão”, irá encontrar desde testes para ver se você tem isso ou não, acredito que até mesmo o grau! até múltiplos artigos e sites falando sobre o transtorno, seu histórico na humanidade, o que é, e o mais incrível, como tratar. Tudo com acesso muito fácil, rápido e dinâmico, o que facilita aquele clássico movimento que criamos com isso de que qualquer momento de retraimento que alguém apresenta, é porque é depressão.

Pode parecer brincadeira, mas essa é uma das melhores definições da depressão que já vi.
Pode parecer brincadeira, mas essa é uma das melhores definições da depressão que já vi.

Mas e se talvez pudéssemos ver essa situação não apenas como patologia, mas também como função da psique (sim, a depressão como uma função de nossa psique, e não somente como uma patologia) de uma maneira um pouco mais para fora dessa quantidade saturada de informações do mesmo teor.

Num pensamento um tanto quanto egóico, sempre acabamos pensando que a doença é apenas um tipo de punição por algo que foi feito, e mesmo após termos aparentemente pago por essa punição, a maioria das vezes ela continua voltando, se é que ela foi realmente embora em algum momento. Isso pode talvez nos dar um vislumbre de algo a ser olhado dentro da própria alma, algo muito mais impessoal e além desse ego.

Geralmente se pensamos no tipo de sentimento que alguém deprimido apresenta, é de profunda tristeza e apatia, falta de vontade para tudo, ou em outras palavras mais comumente usadas, a pessoa se encontra no fundo do poço. Vamos então nos ater a essa parte do “fundo do poço” e usá-la como metáfora, ver a idéia por trás disso. A metáfora do fundo do poço, automaticamente nos remete a uma grande e longa descida a um buraco profundo e escuro, de onde aparentemente não há como fugir. A partir disso, na psicologia arquetípica, Hillman nos traz a metáfora do profundo, a qual nos leva a uma direção sempre de aprofundamento vertical, e assim coloca em xeque o foco da própria psicopatologia, de modo que hoje ela deveria concentrar-se na depressão como o modelo principal de nosso tempo, tal qual a histeria para Freud em seu tempo, ou a esquizofrenia para Jung.

A descida pelo poço

Como na nossa metáfora do poço, a depressão leva a pessoa necessariamente para baixo, talvez de maneira negativa, sim, mas se a vida fosse o tempo todo bondosa e misericordiosa conosco, principalmente quando ela está tentando mostrar algo a nós, que normalmente nos recusamos a ver, será que realmente aprenderíamos qualquer coisa que fosse mesmo?

Afinal, a criança que não leva palmadas de seus pais quando ainda pequena, acaba crescendo mimada e birrenta, não é verdade? quem diria na adolescência então! E mesmo como adultos, sempre tentamos dar um jeitinho, passar a conversa diplomática, ou ignorar uma bronca ou uma lição, se enchendo de coisas para fazer, e entrando naquele ritmo maníaco e frenético de atividades, objetivos e metas para cumprir, dinheiro a ganhar, e por fim não nos damos tempo para pensar, nem para sentir, muito menos para sentirmo-nos tristes, pois temos apenas que produzir e produzir, sem cessar.

Então quando a vida nos dá essa “bordoada”, talvez ela também nos dê com isso um grande motivo para refletirmos o motivo daquilo, mas não do modo: Por que comigo? por que eu? o que foi que fiz para merecer isso? Mas talvez, uma oportunidade de ver o que aquele sintoma está nos dizendo, o que ele está servindo naquele momento, pois talvez essa descida possa ser uma descida às profundezas da própria alma, às profundezas do interior de cada um, um aprofundamento em si mesmo. Talvez, se nosso ritmo frenético nos faz passar por cima de tantas coisas, nos fazendo ignorar tudo, pode ser que apenas deprimindo-se é onde finalmente se possa diminuir o ritmo e olhar para onde não se estava olhando. Ou para quem pensa demais o tempo todo, é onde se possa desacelerar o intelecto, e pensar no que não se estava pensando.

A preocupação com essa profundidade e depressão também permite à psicologia arquetípica uma crítica à nossa cultura, pois numa sociedade que não permite a seus indivíduos deprimir-se não pode encontrar sua profundidade e deve ficar permanentemente inflada numa insistente perturbação maníaca, disfarçada de “crescimento”.

Parece que tentamos o tempo todo estabelecer com a vida, uma relação de controle (um tanto quanto ilusória), a qual na verdade não temos e nunca teremos controle algum, e apenas quando entendemos com essa queda, que não controlamos absolutamente nada em nossas vidas, é quando morre e desaparece os conceitos de verdade e subordinação, de mando e obediência, de senhor e servo, e obtem-se a verdadeira unidade, parceria e união com a vida.

No fundo do poço, um novo horizonte

Talvez nada hoje em dia consiga para nós o que consegue a depressão e por isso sua presença e falar nela seja algo tão marcante, e como estamos deixando os esforços da farmacologia à parte, na depressão somos lançados irremediavelmente no vale da alma, como dizia Hillman.

O poço não deixa de ser como uma mina, ele é também um tipo de mina, como as que se minera diversos metais. Etimologicamente, “metal” significa “mina”, o verbo “minar”, buscar, procurar com afinco. Mas estando num poço fundo e escuro, o que poderíamos esperar procurar ali então? Bom, primeiramente, tudo aquilo que não queríamos ver, que negamos e que ainda assim provavelmente continuaríamos negando, e esse pode ser o fator principal com o qual a pessoa entra em depressão. A partir do momento em que lhe é colocado um espelho em sua frente, ela vê que todas aquelas coisas ruins que tanto julga e acusa os outros, vem também dela mesma.

No paralelo com a psicologia alquímica, uma das primeiras fases da obra ou do atendimento, chama-se nigredo, e ela mostra no paciente muitas vezes um pensamento para baixo e para trás, um intelecto preso em raciocínios e ideais depressivos e redutivos: história passada, fantasias materializadas e explicações concretas junto a um protesto teimosamente amargo com relação a sua condição. A pessoa está vitimizada, traumatizada, dependente, vítima das circunstâncias.

E por incrível que pareça, é justamente nesse emaranhado caótico de cargas negativas e frustrações, da onde se começa a minerar tudo o que é necessário para a superação desse estado, da onde começa a ser retirado tudo de valor que há nesse escuro, pois é do caos e misturas de onde saem as criações e coisas novas, e nesse momento é exatamente onde a pessoa deprimida tem de ser criativa para lidar de outras formas com problemas que talvez estivessem sem ser encarados fazia tempo, e que pudessem estar se repetindo várias vezes. É também das minas mais profundas e escuras da onde são tirados as pedras e os metais mais preciosos que conhecemos, não são?

É importante lembrarmos que para essa e qualquer outra situação, não devemos nunca simplesmente sair dali, mas tirar algo dali, minerar e procurar os metais que ali estão com nossas próprias forças. Mas falando assim, até parece fácil, pois  como alguém com depressão ou muito deprimido vai simplesmente tirar forças para tudo isso se ele se encontra num estado totalmente contrário?

Isso é algo realmente louco, mas esse estado é um dos melhores estados para se procurar, ou trabalhar e tirar algo grande e novo e ser próspero. Vamos ver melhor isso.

Quando estamos acelerados, buscando cumprir todas as metas e prazos, ou com sentimentos a flor da pele, confusos com todos eles, são todos momentos em que estamos cheios, não temos espaço pra mais nada, portanto, saturados de coisas superficiais, e não nos damos tempo para olhar aquele buraco vazio de que tanto fugimos. Mas quando se está deprimido, também sempre se diz que a pessoa está sentindo um grande vazio dentro de si, o que pelo modo que estamos vendo aqui, é algo bom. Pois se há um espaço vazio em nós, é quando podemos finalmente escolher com o que e como preenchê-lo, e isso nos dá uma gama praticamente ilimitada de possibilidades. Então se podemos acabar aprendendo e evoluindo com essas etapas de nossas vidas, estamos realmente tirando algo valioso dela.

Jung chamava esse estágio de recolhimento, o qual todos passamos, de regressão, que nada mais era do que um recuo temporário da energia psíquica, que por sua vez, volta a acender conteúdos inconscientes que trazem à tona valores abandonados ou até novos aspectos da personalidade. Trata-se de uma necessidade nossa de nos adaptar ao mundo externo, e ao mundo interno da psique, onde naturalmente vemos ocorrer o conflito entre identidade X individualidade.

Nossos erros nos ensinam muito mais que nossos acertos

Nosso erros nos ensinam muito mais que nossos acertos, desde que, na nossa condição de humanos, aceitemos esses erros e tornemos a olhar para eles quando necessário.

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Durante as primeiras fases da obra, a alquimia fala de nuvens, neblina e cerração, de uma massa confusa, metáforas igualmente válidas para a mente nos momentos iniciais da análise, e esses momentos iniciais ocorrem não apenas no início literal do processo terapêutico, eles na verdade reaparecem durante todo o trabalho, ciclicamente, o que olhando por cima vai sem dúvida parecer ruim, retrógrado, que o trabalho todo não está funcionando, mas é justamente o oposto.

Só o fato de a pessoa a partir de algum momento, conseguir identificar esse sentimento ou estado de tristeza, já é algo muito valioso, pois pode parecer bobo, mas a maioria das pessoas nem sequer faz idéia do tipo de sentimentos que tem e muito menos como lidar ou expressá-los. E quanto às repetições, James Hillman na psicologia alquímica nos diz que a alma sempre volta às suas mesmas feridas, que ela insiste nas mesmas figuras e emoções, e que até mesmo vemos os mesmos temas nos sonhos por muitos anos. Ela faz esse ciclo de volta constante às suas feridas, para extrair delas novos significados, volta em busca de uma experiência renovada. Daí a importância de não tentarmos simplesmente tentar apagar o que não pode ser apagado, ou ignorar essas feridas como se apenas “aceitando o destino imposto”, pois quando menos esperamos, elas aparecerão cedo ou tarde em outro lugar, por meio de alguma sintomatização

Nessa circularidade, o ego é forçado a conscientizar-se de que há uma outra força governando a coisa toda. Na repetição o ego é forçado a servir a psique. Há um aspecto ritual aqui, uma humilhação, que pode parecer (até mesmo pelo peso que essa palavra nos traz) algo detestável e que se deve fugir, mas aqui devemos vê-la de modo que, é através desse sofrimento que a alma pode experimentar plenamente os eventos da vida, de maneira subjetiva, tendo uma base subjetiva, uma experiência sentida. Um problema encontra uma solução somente após ele nos tocar pessoalmente penetrando naquele ponto onde podemos ser sinceros com nós mesmos e admitir, nos rendermos, reconhecer que há realmente um problema e que ele é apenas seu, e que seu gosto é amargo, como há de ser.

A circularidade da vida e da alma, por fim, é quem nos personaliza. Do ponto de vista da alma, a repetição é uma maneira de nos tornarmos aquilo que somos, nossos atos são o que nos define como seres humanos. Se antes falávamos sobre livrar-nos de nossas questões egóicas e superficiais para nos despersonalizar delas, aqui acontece justamente o contrário. Enquanto estamos presos em nossas questões puramente do ego, agimos como se estivéssemos de certa forma num Éden, como se todas as nossas expectativas e necessidades devem ser supridas e tudo no mundo deve girar em torno disso, praticamente como divindades, acho que muita gente conhece alguém que é ou foi assim. E por mais que isso pareça algo que alguém faça por ser puramente egoísta ou mesquinho, a maioria das vezes essa pessoa simplesmente não se percebe assim, não conhece outro modo de ver o mundo e a vida, e ao encontrar os primeiros obstáculos impostos pela vida e serem privados das maravilhas desse Éden, elas sofrem, e muito. As vezes sozinha, as vezes fazendo outros a sua volta sofrerem, mas sofrem, e se deprimem, e muitas vezes acabando por buscar algum alívio alternativo a essa dor, no alcoolismo, drogas, e etc, num ciclo que as vezes se estende por tempo indeterminado.

Então, o ponto é justamente esse, o que nos personaliza nisso é o próprio sofrimento, que por sua vez acaba sendo um nivelador, nos lembrando de que estamos na mesma condição de mortais, como qualquer outro aqui neste mundo em comum, nos faz olhar mais para algo em torno de uma igualdade, do que a uma onipotência.

É muito comum pessoas depressivas falarem em suicídio, em desejar a própria morte, ou a de outros, culpando a si mesmo ou o mundo e seus habitantes por seu sofrimento, por isso é importante lembrarmos de que, mesmo se o caso do depressivo for o citado acima, um estado deprimido ou depressivo tem vários níveis, e muitos deles, extremamente sensíveis. Não adianta simplesmente tentar jogar a verdade na cara dessa pessoa, não vai ajudar, não adianta tentar dar conselhos baseados na sua própria experiência sobre o que se deve fazer ou não, a experiência de cada um, assim como o modo de ver as coisas, é unicamente de cada um, existe um trabalho igualmente delicado a ser feito, e na maioria dos casos, o melhor que se pode fazer, é se mostrar receptivo e disponível, apenas isso, e isso faz muita diferença por mais que não pareça.

E aqui podemos ver esse desejo autodestrutivo outra forma, no lugar de literalizar esse desejo. Podemos entendê-lo de forma metafórica, como por exemplo, o que em mim precisa morrer, ou que parte minha nesse momento preciso “matar”, que dragão preciso matar agora para poder transcender. O modo como encaramos a morte está diretamente ligado ao modo como reagimos a todas as pequenas mortes em nossas vidas, como a perda de amigos (não necessariamente através da morte), da família, de amantes, de épocas e locais especiais, oportunidades, esperanças e sonhos ou crenças. Todos nós em momentos diversos de nossas vidas precisamos passar pelo “pior” para aprendermos a lição necessária, e poder seguir adiante.

Quando deixamos de insistir tanto na negação, e começamos a aceitar e tomar conta de nossa dor, é sinal que estamos prontos para seguir em frente e fazer as mudanças que tanto gostaríamos que acontecessem. Percebemos então que estar deprimido é muito mais comum e menos “demoníaco” quanto muitas vezes nos fazem pensar que é, não se limita apenas a uma patologia que apenas remédios podem curar, desde que tenhamos a percepção de que cada estado de mente que nos acontece, acontece por um motivo e que devemos dialogar com esses estados internos, para que essa transformação necessária aquele momento, aconteça.
Não importa o estágio de nossas vidas, sempre haverá transições em nossos humores, alterações no material de nossa alma. A depressão quando volta, muitas vezes é vista como uma regressão. Cuidemos com esses termos, pois regressão é um termo que também pertence a uma fantasia desenvolvimentista e mecânica, e nós somos humanos, não maquininhas incessantes.


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